Incidente: etmologicamente, "aquilo que cai sobre alguma coisa". Nestas anotacoes e fragmentos de diário, Roland Barthes experimenta uma forma breve análoga ao haicai japones ou as "epifanias" de Joyce.
"Considero que o haicai é uma espécie de Incidente, de pequena prega, uma fenda insignificante numa grande superfície vazia. O haicai nao deseja agarrar nada, no entanto, há como que uma dobra sensual, o assentimento feliz a lampejos do real, a inflexoes afetivas. A consequencia rigorosa, mas também o que constitui a especialidade e a dificuldade do Haicai, da Epifania, do Incidente, é o constrangimento do nao-comentário. Extrema dificuldade (ou coragem): nao dar o sentido, um sentido; privada de todo comentário, a futilidade do INcidente se poe a nu, e assumir a futilidade é quase heróico." (R.B., A preparacao do romance)
Essas viagens longas, onde o tempo "é o tempo" (nocao definida em Zyon, do Neuromancer, de W. Gibbons), a formidável vaga no espaco te permite a reflexao e a inflexao. E entre um voo e outro pelos mares de nuvens européias, acabei de ler "Incidentes" (Roland Barthes).
Tive o privilégio de conhecer seu trabalho através de Ana C. (aah, meu doce amor, sempre voce, o sorriso mais belo e as bochechas mais gostosas que uma moca pode ter). Pois Ana me introduziu (esquisito verbo em relacao a um homossexual...eheheh) ao mundo de R.B. pelo magnífico "Fragmentos de um discurso amoroso". Primoroso.
Ele é culto, denso, charmoso e seco (o livro e o homem), e este Incidentes me deixou mais apaixonado ainda, e apreensivo, pois tem narrativa cronológica na última parte, que termina seis dias antes do meu aniversário de nove anos. Como eu torcia a cada página por seus escritos no "meu dia".
17 de setembro de 1979
Ontem, domingo, Olivier G. veio almocar comigo; para esperá-lo, recebe-lo, tinha tido todo o cuidado que geralmente demonstra que estou enamorado. Mas, já no almoco, sua timidez ou distancia me intimidava; nenhuma euforia de relacao, longe disso. Pedi-lhe que viesse ao meu lado, na cama, durante a sesta; ele veio muito gentilmente, sentou-se na beirada, leu um livro de figuras; seu corpo estava muito longe, se eu estendia o braco para ele, nao se mexia, fechado: nenhuma complacencia; aliás, logo se foi para o outro comodo. Fui tomado por uma espécie de desespero, tinha vontade de chorar. Via com evidencia que eu tinha de desistir dos rapazes, porque nao havia desejo deles por mim, e porque sou ou muito escrupuloso ou muito desajeitado para impor o meu; que isso era um fato incontornável, verificado por todas as minhas tentativas de flerte, que daí eu ter uma vida triste, que, finalmente, me entedio, e que eu preciso tirar esse interesse, ou essa esperanca, da minha vida. (Se tomo um a um os meus amigos - fora aqueles que nao sao jovens -, é cada vez um fracasso: A., R., J.-L. P., Saul T., Michel D. - R. L., limitado demais, B. M. e B. H., sem desejo etc.) Só me restarao os gigolos. (Mas que farei entao durante as minhas saídas? Noto sempre os jovens, desejando imediatamente, neles, ficar apaixonado por eles. Qual será para ,mim o espetáculo do mundo?) - Toquei um pouco de piano para O., a pedido dele, sabendo já que eu tinha desistido dele; ele tinha olhos muito bonitos, e rosto suave, abrandado pelos longos cabelos: um ser delicado, mas inacessível e enigmático, ao mesmo tempo meigo e distante. Depois mandei-o embora, dizendo que eu tinha de trabalhar, sabendo que estava acabado, e que além dele alguma coisa tinha acabado: o amor de um rapaz.
p.s.: desculpem a falta de sinais...estou em um computador europeu e nao sei mexer nessa merda!